O futuro da Profissão de Advogado
Fonte: Thierry Wickers, presidente do Comité “L’Innovation et avenir de la profession et des services juridiques en Europe”, (em A Inovação e o Futuro da profissão Advogado na Europa, CCBE, Ed. Bruyants, sob a direcção de Michel Benichou). Tradução livre.
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Antes da emergência das tecnologias de informação, o fornecimento de apoio jurídico pelos advogados repousava num modelo único de difícil distanciamento, caracterizado pela existência de uma relação pessoal com o objectivo de elaborar uma solução “à medida” totalmente individualizada, realizada por um prestador de competência elevada e desejoso de garantir a qualidade melhor possível.
Tal forma de proceder limita as economias de escala e não se adapta à “produção em série”. Assim, para muitos serviços jurídicos e judiciários, a necessidade de assegurar serviços de proximidade reforça a predominância do modelo. Escritórios individuais e de pequena dimensão estão bem colocados para os fornecerem, mas com importantes custos de produção. E mais, advogados convidados a adoptar uma lógica empreendedora (quase sempre sem terem uma formação inicial que lhes permita possuírem as competências idóneas) vêem agravar-se as limitações económicas que pesam sobre os seus escritórios. A submissão dos serviços jurídicos ao IVA no espaço europeu criou um aumento considerável dos custos aos particulares.
Por todas estas razões, os serviços jurídicos são geralmente custosos. Para categorias cada vez mais numerosas, o acesso a eles e ao sistema judiciário tende a tornar-se cada vez mais difícil.
Pese embora o facto de o acesso à justiça figurar entre os direitos fundamentais que um estado de direito deve assegurar a todos os cidadãos, salvo raras excepções os sistemas de apoio legal apresentam-se insuficientemente financiados. Na sequência da crise económica, a redução dos orçamentos públicos só agravou a situação na maioria dos países. Estudos conduzidos nos Estados Unidos mostraram que aí a situação é particularmente crítica, já que o procedimento acusatório gera custos consideráveis e que os créditos de apoio legal são fracos e inexistentes, nomeadamente no domínio civil. Outros países inclusive os mais avançados conhecem também uma situação difícil de diversos graus.
Contudo, a dificuldade de acesso ao direito não é apenas uma questão económica que se resolveria pelo aumento dos orçamentos do apoio legal, pelos ganhos de produtividade ou pelo recurso a mecanismos como o da protecção jurídica. O fornecimento de serviços jurídicos, assim como o de todas as prestações intelectuais que impõem o recurso a profissionais de competências técnicas elevadas, está sujeito a limitações inerentes à assimetria de informação entre o prestador e o seu cliente. Este é levado a solicitar a assistência de um perito porque não possui as suficientes competências jurídicas. Mas a ausência de conhecimentos jurídicos constitui um obstáculo à realização desta iniciativa: ela impede o consumidor de qualificar correctamente o seu problema e de compreender que necessita de ajuda, ela torna difícil a escolha do profissional susceptível de se encarregar dele e priva-o da possibilidade de ter um julgamento esclarecido acerca da qualidade dos serviços prestados.
Estas limitações não são específicas da matéria jurídica. Por exemplo, encontram-se igualmente em matéria médica. Mas, se uma pessoa que nunca efectuou estudos médicos se apercebe habitualmente estar perante um problema de saúde, os não juristas têm dificuldade em apreender que os problemas que têm em mão são de natureza jurídica. Infelizmente é raro que o individuo, a quem a lei confere numerosos direitos e impõe múltiplas obrigações, tenha recebido uma educação que o prepare a confrontar-se com o direito. Quanto às empresas, apenas aquelas que atingiram uma dimensão suficientemente importante podem esperar dispor de competências jurídicas internas de relevo.
Não obstante os esforços desenvolvidos individual ou colectivamente pelos advogados, a oferta tradicional não permite evitar que uma parte importante dos indivíduos e das empresas não beneficie de acesso satisfatório ao direito ou à justiça porque ela responde essencialmente aos pedidos formulados por aqueles capazes de identificarem o seu problema e de compreenderem que a solução passa pelo apoio de um profissional do direito.
A medida da eficácia dos sistemas judiciais não integra a avaliação das necessidades não satisfeitas. A maioria dos estudos efectuados actualmente concentra-se na situação dos utilizadores do sistema, sem procurar medir a dimensão dos indivíduos e empresas que a ele não chegam a aceder.
Esta situação é de natureza a fragilizar os fundamentos do estado de direito. Efectivamente, nas democracias modernas os domínios de intervenção do legislador estendem-se incessantemente, traduzindo-se num desenvolvimento constante das normas. A tecnologia disponibiliza aos estados utensílios poderosos. Estes permitem acentuar o controlo dos comportamentos em numerosos domínios. Consequentemente, multiplicam-se as ocasiões em que indivíduos e empresas têm de assegurar a sua defesa. O acesso ao direito torna-se simultaneamente mais difícil e mais necessário. Não pára de se acentuar o fosso entre os susceptíveis de controlar o meio jurídico envolvente e os que não estão habilitados em fazê-lo. Isto é uma fonte maior de desigualdade. Estas dificuldades de acesso ao direito e à justiça gerem, naqueles que não conseguem defender ou fazer valer os seus direitos, um sentimento de iniquidade que mina a confiança no sistema judicial e no estado de direito. Vislumbra-se aí uma das causas da subida do populismo.
Os escritórios de advogados não encontraram dificuldade especial em adoptar os utensílios digitais que foram aparecendo, mesmo se estes não ocupavam, até agora, um lugar tão importante como no sector industrial. Os computadores substituíram progressivamente as máquinas de escrever, as bases de dados substituíram o papel, os gabinetes conectaram-se.
As profissões jurídicas são profissões de peritos, em que a realização do trabalho mobiliza antes de mais capital humano. Mas as tarefas não possuem todas a mesma complexidade. Agora, as tecnologias de informação permitem que a máquina realize as tarefas mais simples ou mais repetitivas. Estas mudanças são o resultado das capacidades de cálculo dos computadores, dos progressos da inteligência artificial e da machine learning, e da exploração de quantidades de dados cada vez mais consideráveis (aí incluídas os produzidos pelos sistemas judiciários). É impensável que estes fenómenos não vão continuar nos próximos anos, trazendo consigo transformações a um ritmo exponencial.
A introdução destas técnicas pode ter uma incidência importante nos preços das prestações jurídicas ao permitir produções em série, em vez do que se passou durante a revolução industrial. O modelo económico dos escritórios já está profundamente afectado. A facturação horária, praticada nomeadamente nos grandes escritórios, perdeu a pertinência. Além disso, os escritórios, mesmo os de pequena dimensão, vão poder aceder e partilhar recursos disponíveis online.
As tecnologias de informação abrem novas perspectivas ao público e às profissões jurídicas, pois parecem capazes de transformar:
- o modo como é possível o acesso à informação jurídica e às prestações jurídicas. As TI libertam do contacto físico. As informações jurídicas tornam-se acessíveis a toda a hora e em qualquer lugar, já não apenas por conexão ao computador mas graças a aplicações (apps) presentes nos telemóveis. Estas apps permitem o diálogo entre o cliente e um sistema inteligente, enquanto aguardamos que os aparelhos conectados consigam dialogar entre si;
- a maneira como o contacto entre o profissional e o cliente se efectua. O percurso do cliente não começa quando entra no escritório do advogado. Foi-lhe necessário, para aí chegar, perceber que se confrontava com um problema jurídico e identificar os recursos possibilitando a resolução. Escolher um advogado é um processo complexo, e as TI facilitam estas primeiras etapas do percurso do cliente para a resolução do seu problema jurídico.
As TI permitem assim que um pedido, latente até agora, se manifeste. O pedido de direito, já de si com tendência a crescer, deveria por mais esta razão conhecer um desenvolvimento espectacular. Estas mudanças analisam-se antes de mais como prodigiosas oportunidades que os advogados têm de aprender a agarrar.
Efectivamente, eles não foram os primeiros a compreender que as ferramentas digitais eram susceptíveis de provocar um alargamento do mercado do direito. Não mediram suficientemente que podiam pôr-se ao serviço de uma oferta renovada, para responder a necessidades insatisfeitas de direito, de melhor forma que da oferta tradicional. Foi assim que o movimento foi iniciado por novos prestadores, estranhos à profissão Advogado, com um desenvolvimento fulminante. Apenas em alguns anos apareceram:
- fornecedores de informações jurídicas, animados pela vontade de tornar o direito mais acessível, que colocam online informação concebida na linguagem dos mesmos que exprimem as suas necessidades as suas necessidades nas redes sociais, e que utilizam as possibilidades de vídeos ou de chatbots;
- sites de redacção online de actos jurídicos, que utilizam a IA para produzir automaticamente certos actos com personalização garantida por diálogo entre o cliente e a máquina:
- serviços de assistência judiciária, que propõem acompanhar os clientes numa acção de contencioso e ajudá-los a formular uma reclamação ou a descobrir uma jurisdição;
- plataformas de resolução online de litígios, que propõem uma alternativa à acção judicial e mesmo dispensam qualquer intervenção humana;
- sites de justiça preditiva, que analisam os dados (decisões) produzidos pelas instituições judiciárias, para avaliar as hipóteses de sucesso de um processo, indicar resultados potenciais ou traçar o perfil de uma jurisdição ou de um magistrado;
- serviços de conexão que facilitam a escolha de um advogado. Eles podem propor selecções de advogados ou organizar leilões. Por vezes, dão a possibilidade de efectuar uma apreciação sobre o trabalho efectuado pelo advogado recomendado e assim anotar e comparar os profissionais;
- serviços de financiamento do processo.
As opções abertas às jurisdições fazem pensar nas que estão abertas aos escritórios de advogados. Efectivamente, os tribunais podem colocar as TI ao serviço de uma modernização do seu funcionamento, no sentido de melhorar as condições de prestação de justiça, a rapidez e a eficácia. Podemos mesmo antever mudanças bastante mais radicais.
O recurso às plataformas online de resolução de litígios pode surgir como alternativa à saturação e à lentidão dos tribunais. Algumas delas já permitem a resolução de conflitos que ficariam sem solução, devido à sua natureza, às partes que opõem ou aos pequenos montantes em causa. Se as TI permitem efectivamente desenvolver o acesso ao direito, elas deveriam provocar um desenvolvimento do pedido de justiça. Nenhum sistema judiciário é capaz hoje em dia de responder eficazmente a um crescimento importante do pedido sem pelo seu lado adoptar as novas ferramentas. Consequentemente, o serviço público de justiça deveria talvez dotar-se de capacidades online de resolução de litígios.
Outra pista promissória é a da “justiça preditiva”, que pode avaliar as hipóteses de sucesso de uma acção judicial sem recorrer à experiência e à competência de um perito. O efeito da justiça preditiva sobre o processo de criação de jurisprudência (sobretudo nos países de common law), o comportamento dos juízes e o dos utilizadores será garantidamente considerável. Serão afinados os algoritmos preditivos para facilitar e acelerar o trabalho judiciário, e eles ajudarão os juízes a tomar decisões. Tais programas já são utilizados nos Estados Unidos. Só é concebível o recurso a estes programas no respeito dos direitos da defesa e na igualdade de armas, o que necessita de total transparência, quer se trate dos dados utilizados quer das características dos algoritmos utilizados. Pela sua natureza, os resultados fornecidos pelos algoritmos são influenciados pelo enviesamento (erro?) de quem os concebeu.
Os inquéritos disponíveis mostram que em muito pouco tempo consultar motores de busca e sites especializados tornou-se um reflexo, em todos os domínios. Tendência mais forte ainda mas gerações mais jovens. Que vai acentuar-se em todos os que estiveram em contacto com as tecnologias desde tenra idade. O estudo apresentado no colóquio realizado em três países da União Europeia permite apreciar a amplitude do fenómeno. Em alguns dos países estudados, os advogados já não são considerados a fonte prioritária pelos interrogados, que vão primeiro procurar resposta aos seus problemas na internet. Há cinco anos, esta concorrência não existia. Donde o movimento é de uma força e rapidez inauditas. Ao mesmo tempo, confirma-se que as necessidades de direito procuram exprimir-se.
Não existe algum país em que o direito de fornecer informação jurídica e de aceder ao conhecimento jurídico esteja reservado em exclusividade aos advogados. Como é muito pouco frequente que fornecer prestações jurídicas seja monopólio das profissões jurídicas e a fortiori da profissão Advogado. Também no domínio judiciário é muito raro que a totalidade das actividades judiciárias lhes esteja reservada. Contudo, e de um modo geral, o legislador considerou ser necessário proteger o público, dando-lhe garantias de ética e de competência. Ele definiu domínios nos quais as prestações jurídicas ou judiciais deviam ser fornecidas por profissionais sujeitos a obrigações e controlos muito estritos.
Pelas características variáveis deste meio ambiente regulamentar, a emergência da legaltechs pode provocar conflitos entre prestadores tradicionais os novos prestadores, sobretudo quando estes oferecem prestações concorrentes dos advogados, ou revindicam a possibilidade de o fazerem. As empresas de legaltechs podem ser vistas como solução que pela primeira vez oferece acesso a informação e prestações jurídicas, o que os advogados não eram capazes por causa das características da sua oferta. Salta à evidência que os novos prestadores não apresentam o mesmo nível de competência ou as mesmas garantias deontológicas que os advogados. Contudo, é inegável que os serviços que propõem representam um progresso para os indivíduos e para as empresas que não possuíam toda a assistência jurídica.
Tal como o mostram as interrogações da Comissão Europeia, a sua emergência submete o quadro regulamentar a fortes tensões (coacções, restrições, constrangimentos??). A própria definição de prestação jurídica pode ser posta em questão, pois foi estabelecida numa época em que era inconcebível que ela pudesse ser fornecida por uma máquina. Subsiste que as garantias que as regras deontológicas às quais os advogados estão sujeitos fornecem ao público não são a sua única razão de ser. Ao mobilizarem os recursos do direito e do sistema judiciário a bem dos seus clientes, eles exercem igualmente uma função indispensável de contra-poder e por aí asseguram a defesa das liberdades. Certamente que existe um “mercado do direito”, mas o direito também é um componente do estado de direito.
As tecnologias dispensadas pelos recém-chegados não lhes estão reservadas e podem ser utilizadas pelos advogados. Há que tirar lição do facto que a profissão não foi capaz de conceber novas maneiras de produzir ou fornecer prestações jurídicas. Encontramos antigos advogados entre os empreendedores da legaltech, os quais no quadro da sua profissão de origem não conseguiram levar a cabo o seu projecto empreendedor. A regulamentação profissional não antevia que o fornecimento de prestações jurídicas pudesse necessitar de importantes investimentos nem do recurso a formas jurídicas adaptadas. De igual modo, as regras deontológicas devem ter em conta os novos modos de contacto entre clientes e advogados, ou a possibilidade da relação profissional se desenrolar exclusivamente online.
Também a formação inicial que os advogados recebem tem um papel importante. Ela não pode cingir-se à aprendizagem do direito, já que aos que o exercem no quadro liberal são exigíveis competências de gestão e de chefia (gerência, direcção??). O lugar que as TI vieram ocupar implica a sua aprendizagem, para poder compreendê-las e dominá-las. Advogado que ignorem tudo – do digital e da gestão de empresas – não estão à altura para efectuar práticas inovadoras que, no interesse do público, sejam respeitadoras da ética da profissão.
É indispensável sensibilizar o universo dos avogados para as implicações da revolução digital, nele incluídos os que na origem não receberam formação adequada e que igualmente têm de se adaptar a este novo contexto. Devem ser feitos esforços especiais tendo em vista os advogados que exercem a título individual ou em pequenas estruturas. Estes são especialmente susceptíveis de ficarem para trás do movimento, por não disporem nem de tempo nem dos meios (humanos ou financeiros) para investir neste domínio.
Assim, as ordens de advogados têm um papel importante a desempenhar, para favorecer e difundir as práticas inovadoras. Seja organizando estudos que levem à consciencialização dos advogados, seja pela montagem de estruturas ad hoc que assegurem a promoção da inovação. Podem ainda as ordens favorecer a presença dos advogados na internet, ao elaborar ferramentas disponibilizadas à colectividade dos mesmos.
Será certamente difícil que as ordens realizem instrumentos colectivos tão eficazes ou atractivos como os do mercado. Nem sempre conseguem oferecer os mesmos serviços, e não é necessariamente essa a sua função. Se até agora as ordens mostraram pouca apetência para uma colaboração com os novos prestadores, essa questão põe-se directamente a todos os escritórios que não estão habilitados para se dotarem de uma estratégia digital eficaz. Os serviços disponibilizados pelas plataformas implicam em muitos casos a participação dos advogados e estendem-se à ligação com os clientes. As regras deontológicas devem, no interesse do público, proteger as relações entre plataformas e advogados e permitir-lhes intervir.
Certos desenvolvimentos, como os ligados à TI, podem constituir novas ocasiões de colaboração entre as ordens, inclusive ordens de diferentes nacionalidades. Dispôr de um motor de IT e pô-lo à disposição dos seus membros pode constituir um desafio para a profissão. Mas certamente que a profissão não precisa de tantos motores de IT quantos os países da União Europeia. Novos campos abrem-se à colaboração entre ordens.
A irrupção de novas tecnologias, com efeitos fortemente disruptivos, pode ser vivida como uma tensão e provocar inquietação. Contudo ela deveria ser vivida como uma extraordinária oportunidade, mesmo aos olhos das gerações mais antigas a quem pode desestabilizar as certezas e práticas estabelecidas. As novas tecnologias oferecem à profissão a possibilidade de cumprir de forma mais completa uma missão que é para ela uma exigência e uma das principais razões de ser: assegurar o acesso de todos ao direito e à justiça.
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Acordar: Como os jovens advogados veem o futuro
Fonte: Orsolya Görgényi, antigo presidente da Associação internacional de jovens advogados (AIJA), (em A Inovação e o Futuro da profissão Advogado na Europa, CCBE, Ed. Bruyants, 2017 sob a direcção de Michel Benichou). Tradução livre.
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1975. Imagine um mundo sem smartphones, sem cameras digitais, sem a oportunidade de tirar tantas fotografias quanto as que quiser. Uma única empresa domina o fotográfico, quer a nível de cameras como de filmes fotográficos: a Kodak.
Neste mundo, um jovem engenheiro de 24 anos, Steven Sasson, inventou a fotografia digital. Esta invenção perturbou a indústria? Claro! Não naquele momento, mas no final de contas, virou o mundo da fotografia de pernas para o ar.
O que é particularmente triste é que essa tecnologia que quase matou a Kodak nasceu na empresa. Sasson trabalhava na Kodak, que detinha a patente para camaras digitais. A Kodak decidiu não colocar a sua primeira camera digital moderna no mercado e em vez disso continuar com o seu modelo de negócio lucrativo de venda de camaras baratas e filmes fotográficos caros.
A patente expirou em 2007. Cinco anos depois, a Kodak entrou em processo de insolvência.
1. A maior ameaça
Porque partilhei esta história consigo? De acordo com os resultados de pesquisa coletiva CCBE-AIJA sobre o futuro da advocacia, 60% dos jovens advogados acreditam que a maior ameaça para a advocacia são os próprios advogados. Não os robôs a substituir humanos, nem profissões jurídicas alternativas, ou mesmo justiça preditiva, mas os advogados em si mesmos – a sua resistência à inovação.
Esta atitude pode ser justificada por várias razões.
Em primeiro lugar, como advogados, sofremos de uma típica “mentalidade de advogado”: temos tendência para ser perfecionistas, sépticos e autónomos. Estes traços pessoais podem criar grandes advogados, mas também os tornam particularmente difíceis de gerir, mudar ou inovar. Perfecionistas não são bons na teoria da tentativa-erro. Contudo, esta é muitas vezes um pré-requisito para a mudança e a inovação. A Kodak quis que os seus produtos fossem perfeitos, e também lhe faltou a mentalidade de high-tech de “fazer o produto, lançá-lo e corrigi-lo”.
Ser séptico é uma espécie de risco profissional. Procuramos problemas de forma a proteger os nossos clientes. Mas uma mentalidade negativa não ajuda a inovar.
Como autónomos e independentes, não gostamos que nos digam o que fazer. Mas vale a pena aprender com os outros se os nossos próprios erros puderem resultar no nosso desaparecimento do mercado.
A segunda razão pode muito bem ser a falta de imaginação. Não prevemos a mudança. A Kodak não acreditava que alguém quisesse ver fotografias na sua televisão. A maioria de nós também não conseguiria pensar fora da caixa. Henry Ford disse “Se eu tivesse perguntado às pessoas o que elas queriam, ter-me-iam respondido cavalos mais rápidos”.
A terceira razão para a nossa resistência poderá ser falta de ambição. Sasson estimou que seriam precisos 15 a 20 anos para que a camara digital competisse com a camara analógica. Os gestores da sociedade não estavam tão entusiasmados com o futuro distante. O sucesso passado poderá tornar-nos comodistas e reticentes à mudança do modelo de negócio que nos serviu tão bem. “É difícil convencer uma sala cheia de milionários de que o seu modelo de negócio está errado” é uma das famosas frases de Richard Susskind.
Se queremos um final feliz para a nossa história, precisamos de mudar a nossa atitude. Esta é a primeira mensagem da pesquisa referida.
II. Preso entre dois mundos
Desviando para a segunda mensagem da pesquisa, 60% dos inquiridos dizem que as suas empresas, embora conscientes das mudanças de mercado e tecnologia, ainda não tomaram medidas para responder aos desafios do futuro. Sentem também que o estágio de advocacia não se está a adaptar o suficientemente a este novo contexto.
Estamos um pouco perdidos entre dois mundos: o passado, com a prática tradicional, valores e regras estabelecidas; e o novo mundo da alta-tecnologia, com muitas possibilidades, cujas regras ainda não estão claras.
Estamos conscientes da existência do novo mundo, mas apegados ao antigo, ou no mínimo, presos entre os dois, sem dar os passos necessários para chegar ao outro lado.
O futuro está aqui. Aqueles que não atuem agora serão deixados para trás. Não é mais o grande peixe a alimentar-se dos pequeninos, mas o peixe mais rápido comendo os mais lentos.
III. Etapas práticas
Como é que nos podemos tornar o peixe rápido e beneficiar das possibilidades? Posso agrupar as restantes conclusões do estudo em três blocos.
A. Marketing e Publicidade
Graças à incessante conectividade e ao crescente mercado legal eletrónico, os potenciais clientes procuram soluções online primeiro e muito poucos contactam um advogado. O tempo dos “sites meramente publicitários” terminou. Mais e mais formas de análise legal automatizada são disponibilizadas online, dentro de uma lógica de relação advogado/cliente totalmente automatizada. Um crescente número de sociedades de advogados oferece subscrições baratas de apoio jurídico ou de produção automatizada de documentos.
Com a ajuda de cookies e algoritmos, as sociedades de advogados serão capazes de reunir informação dos seus potenciais clientes através da web e das respetivas redes sociais, e utilizar esses dados para fins comerciais. Na maioria dos países, isto envolveria um repensar das regras de marketing, bem como das taxas de sucesso e de referência, de forma a permitir aos advogados uma igualdade de oportunidades no mercado dos serviços jurídicos.
B. Novas tecnologias
Nós não podemos cumprir os desafios futuros sem introduzir a Inteligência Artificial e outras novas tecnologias no nosso dia a dia profissional.
Richard Susskind defende que em 2020, as sociedades de advogados – e a maioria das restantes profissões – terão uma escolha muito clara a fazer: Ou competem com as máquinas ou constroem eles próprios a máquinas que competirão com outras máquinas.
No último ano, numa conferencia da ANJA, quase ninguém tinha ouvido falar do Watson da IBM, quanto mais saber o que o Watson tinha a ver com a prática jurídica. Em um ano esta realidade alterou-se completamente!
O que é único no Watson, o robô de inteligência artificial que conseguiu vencer, em 2011 – e por uma larga margem – os dois maiores jogadores de todos os tempos do famoso programa de perguntas e respostas “Jeopardy!”, é que este consegue entender informação estruturada, como literatura, artigos, blogs ou tweets – o que corresponde a 80% dos dados disponíveis hoje em dia. O Watson entende o contexto, o que é muito diferente do simples reconhecimento de voz. Mas o que o torna tão poderoso é a sua capacidade de aprender. Quanto mais interagimos com ele, melhor se torna.
O Watson, que antigamente ocupava uma sala, foi reduzido para o tamanho de uma pessoa – e no inicio de 2015, um grupo de estudantes da Universidade de Toronto criou uma start-up que introduzia a inteligência artificial na pesquisa jurídica, utilizando o Watson como plataforma. Lançaram assim a inteligência ROSS, um sistema de inteligência artificial que consegue responder a questões jurídicas na linguagem natural dos advogados. Pergunte-lhe as suas questões em Inglês corrente, como se fosse um colega, e o ROSS lê toda o corpo legislativo e devolve-lhe – num instante – uma resposta ou nota relevante, com base na legislação, jurisprudência e fontes secundárias, com citações.
A sociedade recebeu investimentos elevados, deslocou-se para Silicon Valley, e agora o robô legal é acessível via internet e faturado como serviço de subscrição. Já possui sociedades de advogados como clientes. É apenas uma questão de tempo até que o ROSS e o Watson aprendam a legislação de outros países. A Dentons é uma das investidoras no ROSS, enquanto que a IBM planeia transferir o Watson for Legal para a Europa. O Watson já fala 9 Idiomas!
Entender onde nos encontramos hoje é um primeiro passo essencial a tomar antes de olhar para onde queremos ir amanhã.
Com a Inteligência Artificial e as novas tecnologias como tópico principal do Congresso Internacional de Jovens Advogados de 2017, que teve lugar em Tóquio de 28 de agosto a 1 de setembro, “forçámos” os jovens advogados a familiarizarem-se com os desenvolvimentos atuais. Os jovens advogados também precisavam de um alerta para perceberem o tamanho dos desafios que a advocacia está a enfrentar. Assim, encorajámos 20 (sub)comissões científicas da AIJA a entender e abraçar a emergência da inteligência artificial, externalizando e mudando rapidamente o mercado tecnológico, e a organiza mais de 50 horas de formação de alta qualidade – abrangendo todas as áreas jurídicas desde os direitos humanos ao direito bancário – dedicada às novas tecnologias. Preparar um programa científico completo vocacionado para as novas tecnologias provou ser uma ferramenta muito eficiente para a consciencialização.
Vamos voltar aos resultados da pesquisa que dizem respeito às novas tecnologias:
Quatro em cada cinco jovens advogados pensam que as novas tecnologias irão afetar a forma como fornecemos serviços jurídicos e terão influência nas taxas legais, enquanto que metade já enfrenta a pressão dos preços.
Atualmente apenas 2% usa inteligência artificial, mas uma grande maioria acredita que nos próximos cinco anos, a inteligência artificial será capaz de realizar tarefas que atualmente são feitas por advogados.
70% acredita que a Justiça Preditiva (o uso de sistemas automatizados capazes de prever com elevado grau de certeza a possível solução dos litígios) terá impacto na profissão.
Como é que a Justiça preditiva trabalha no meio legal? Esta é baseada em dados analíticos: milhões de páginas de registos de litígios são introduzidos numa plataforma analítica que os organiza em dados não estruturados, usando um processamento de linguagem natural e técnicas de aprendizagem automática. Poderá então simplesmente perguntar quem venceu um tipo específico de caso numa certa área geográfica; ou qual é o resultado mais provável de certo caso, e a plataforma dar-lhe-á a resposta num instante.
De acordo com Bem Wolkov, “A Big Data está a trazer transparência. Escolher advogados por qualquer outro motivo que não a sua taxa de sucesso deixou de fazer sentido.”
C. Abrindo a profissão
Num tempo em que o investimento é crucial para melhorar a prestação de serviços de advocacia, uma regulação que proíbe as sociedades de advogados de investimento institucional em ações parece ser anacrónica.
Quase 60% dos jovens advogados acredita que:
Sociedades de advogados deverão ser controladas em grande parte – mas não completamente – por advogados.
Sociedades de advogados dedicar-se-ão em parcerias multidisciplinares, permitindo que outros profissionais se tornem sócios e que as sociedades de advogados prestem outros serviços.
Serviços jurídicos realizados por outros prestadores de serviços terão uma maior importância.
Vamos enfrentar a realidade: prestadores de serviços alternativos não podem continuar a ser considerados “alternativos” – já são consideravelmente correntes nos Estados Unidos e encontram-se também em ascensão na Europa.
A LegalZoom, que presta acesso barato, rápido e facilitado a formulários jurídicos, frequentemente combinados com serviços jurídicos à base do modelo da subscrição, e que oferece produtos de autoajuda legal aos clientes, tem mais de 3.6 milhões de consumidores, e foi a primeira entidade legal dos Estados Unidos a adquirir a licença de estrutura de negócio alternativa no Reino Unido.
Em setembro de 2016, A Rocket Lawyer, uma sociedade de tecnologia legal apoiada pela Google, celebrou uma parceria com a Editora legal francesa “Éditions Lefebvre Sarrut” (ELS) para lançar a Rocket Lawyer Europe em França, Espanha e Holanda, antes de “rumar” para outros países europeus.
A Axiom, uma empresa de subcontratação jurídica com grandes sociedades como clientes: celebrou um contrato de cinco anos de gestão de serviços com a Johnson & Johnson em 10 línguas e assinou uma transação de 73 milhões de dólares com a Credit Suisse para o processamento de acordos de gestão empresarial.
A UnitedLex desenvolveu tecnologias de propriedade e, tendo construído uma força de trabalho multidisciplinar global de mais de 2,000 pessoas em 22 núcleos de prestação de serviços, conta com metade das sociedades de advogados do ranking da AmLaw 100 e um quarto das sociedades que pertencem ao Fortune 500 como clientes.
Lexis-Nexis comprou uma pequena start-up de Silicon Valley chamada Lex Machina. O seu software analisa documentos jurídicos publicos usando processamento de linguagem natural para ajudar a prever como é que um juiz decidirá perante um certo tipo de casos.
E não nos podemos esquecer dos agentes tradicionais: As quatro grandes empresas de consultoria, sociedades de advogados globais e das editoras jurídicas.
A Dentons, a maior sociedade de advogados do mundo, criou os NextLaw Labs, uma subsidiária independente e autónoma concebida para quebrar com a atual industria legal através da inovação. Têm um investimento confidencial na inteligência ROSS, desenvolvido pelo Watson da IBM.
A Thomson Reuters, editora da Westlaw, utiliza o Watson da IBM transversalmente nos seus negócios de informação. O Watson precisa de Big Data e preparação (pelo menos inicialmente) por pessoas, e a Thomson Reuters tem ambos.
Como pode ver, existem muitas coisas a considerar e vários passos a seguir para nos tornarmos no peixe rápido e beneficiar das possibilidades. PREPARE-SE e dê esses passos.
IV. Mensagens finais
Reinventar uma sociedade de advogados – quanto mais uma profissão inteira – soa a reparar os motores de um avião, sem que tenhamos tempo para o aterrar.
As boas noticias é que conseguimos fazê-lo. Os tribunais e as sociedades de advogados podem – e de acordo com esta pesquisa é esperado que o façam – desempenhar o papel vital de orientar e ajudar advogados a entrar neste novo mundo, enquanto protegem alguns dos valores do passado.
As questões a considerar são:
O que podem advogados em prática individual e a gestão de sociedades de advogados fazer para inovar e prepararem-se de forma proativa para o futuro?
Qual é a “proteção” que os reguladores e os tribunais podem fornecer?
Que programas de formação e oportunidades de colaboração podem as ordens profissionais dos advogados e os tribunais oferecer?
Aquando a resposta a estas questões, é tempo de pensar “fora da caixa”. Como cientista, Alan Kay diz que “A melhor forma de prever o futuro é inventando-o”.
O futuro está cheio de oportunidades imperdíveis. Ao inovar nas tecnologias e modelos de negócios, podemos não só tornarmo-nos uma “promissora, brilhante e digital” versão de nós próprios, mas também concretizar o acesso à justiça e oferecer serviços jurídicos acessíveis a uma base de clientes em expansão, e preencher as atuais necessidades não satisfeitas.
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A propósito de urbanidade e redes sociais.
Por Ana Luz, membro da Lista D
Sou filha de pessoas humildes, um pai com a 4ª classe e uma mãe com a 3ª, ambos a iniciar a sua vida laboral, respetivamente, aos 11 e 15 anos de idade. O meu pai sempre fez questão de dizer que deu aos filhos o que a ele não proporcionaram: um curso superior. De facto, muniram-nos de uma preparação para a vida, que ambos não conseguiram almejar.
Nunca na minha infância ou mesmo adolescência, almejei o sonho ou ambição de ser advogada.
Contudo, descobri primeiro o Direito, depois a Advocacia. Primeiro o curso, em que aprendi a pensar os direitos, liberdades e garantias, com a íntima convicção que era capaz de mudar o Mundo. Acho que todos acalentámos essa esperança interior de sermos e contruirmos um Mundo melhor. Depois a nobre profissão de Advogado. Sim, por ela me apaixonei quando nas sessões de Deontologia se indicou a leitura do Saudoso Causídico Dr. António Arnault, em “Iniciação à Advocacia”.
Ali apaixonei-me pelo que é ser advogado: “(…) um agente da convivência cívica e da paz social (…) lutar contra o arbítrio e as iniquidades, pugnar por uma sociedade mais justa e convivente.”
Na minha formação tive o privilégio de ter como Patrono um Advogado naquilo que considero a verdadeira acepção da palavra. Alguém que estava disponível para o outro, clientes e colegas a quem ministrava a sua formação, que pautava a sua conduta pessoal e profissional como um exemplo de Ser Humano e Causídico.
Sempre o observei com admiração, como a todos os outros Ilustres Advogados da comarca, mais velhos, mas sempre disponíveis, para uma palavra amiga, para um ensinamento, para um sorriso ou carinho. Pensava: quero concluir a minha formação e ser assim –
“perfeito”! Perfeito não imaculado, no sentido de alcançar um papel social de respeito e admiração, pelos pares, pela família, pela sociedade em geral. Servir de exemplo pelo bem que faria na busca e construção da Justiça.
E isso implicaria sempre o respeito pelos demais, por clientes, agentes da justiça e, sobretudo, todos os Colegas, porquanto cada um desenvolve o seu patrocínio, defendendo da forma mais dedicada e prestimosa o seu Cliente, mas respeitando igualmente o outro ponto de vista – o do Colega que representa o lado oposto da barricada.
Contudo, ao longo da última década, talvez duas, o respeito e urbanidade que deveria ser devido ao outro, se não por ser uma questão de educação, seria sempre pelo cumprimento da Lei que é o Estatuto da Ordem dos Advogados, caiu em desuso.
Os advogados têm-se boicotado a si mesmos. Têm contribuído para o descrédito com que nos olham, nós que sempre estivemos para servir o outro, qualquer que ele fosse porque não noscabe a nós juízos de valor ou de moralidade. Cabe-nos exigir ao Estado que atue e atue sempre em estrito cumprimento da Lei e da Constituição.
Hoje corremos as redes sociais e a leviandade com que se escreve, se insulta o outro, se procura descredibilizar, se põe em xeque, é tudo menos um exercício de urbanidade que a todos é exigido e devido. Mais, é um arrepiar de um dos princípios mais basilares do Estado de Direito Democrático: respeitar a opinião do outro, por o mesmo a ela ter direito, ainda que da mesma se discorde, mesmo frontalmente. Isso é viver em Democracia: poder ter um credo, uma posição, uma opinião diferente dos demais; poder dizê-lo sem ser insultado ou afrontado por isso. Poder discordar porque penso diferente, mas saber que ao outro assiste o mesmo direito.
É a velha máxima que todos aprendemos no primeiro ano dos bancos da Faculdade: a minha liberdade termina onde começa a do outro.
E ser advogado é exercer uma profissão nobre, é assumir um papel diferenciador na Sociedade.
Não somos sapateiros, cozinheiros, barbeiros, ou qualquer outra profissão que terá, certamente, aspectos diferenciados e merecedores de respeito.
Somos Advogados e de nós se exige (devemos nós próprios exigir, cada um de per si) um
humanismo, um papel interventor e cívico, na busca de uma melhor Justiça e de uma Sociedade mais equitativa. E para tal, temos de nos respeitar, a nós mesmos e ao outro!
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Precariedade e subordinação – o caso da nova geração de advogados
Fonte: https://www.academia.edu/82225222/Precariedade_e_subordinação_o_caso_da_nova_geração_de_advogados
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A expansão da profissionalização no período histórico da financiarização do capitalismo dominado pelo discurso único e por políticas neoliberais, é, ao mesmo tempo, um processo de proletarização de advogados.
Uma análise sociológica do processo e da situação deve questionar-se se e como os profissionais da advocacia se dividem entre aqueles que continuam a prosseguir, mesmo que parcialmente, os ideias profissionais de serviço ao interesse geral e à defesa dos direitos das pessoas, incluindo as com menos posses, e os que desistiram de pensar nisso – por exemplo, estudando as lutas judiciais a respeito de direitos humanos e comparando-as com o envolvimento dos advogados nas questões relacionadas com a construção de mercados e oportunidades de negócio e do impacto dessas atividades na organização da Ordem dos Advogados. Além da análise sincrónica da cristalização da estratificação social dos profissionais, uma análise histórica do modo como o mundo das profissões se foi cruzando, sob o capitalismo, com o mundo do trabalho poderá ajudar a compreender a divisão criada nas profissões pela proletarização de uma parte dos seus membros. Cristalização, a existir, paralela ao reforço pós-moderno observável dos muros sociais entre os que competem e os que sobrevivem, os que são recompensados e os que são penalizados.
Palavras-chave: estratificação profissional, proletarização, advogados, capitalismo, direitos humanos.
Precariedade e subordinação – o caso da nova geração de advogados
Proletarização designa o processo de integração de trabalhadores assalariados no modo de produção capitalista, no século XIX. Os trabalhadores agrícolas foram sendo substituídos por trabalhadores industriais. No pós-guerra e mais aceleradamente nas sociedades do conhecimento, pós-industriais, com a deslocalização das indústrias para países emergentes, onde o capitalismo conquistou novos mercados, o próprio capitalismo teve a necessidade de criar classes médias, trabalho não produtivo, maneiras de se financiar através de sistemas de distribuição da riqueza e de consumo. Além de penetrar em novos territórios anteriormente colonizados, o capitalismo entrou também
em campos de atividade anteriormente com grande autonomia e até maioritariamente críticos do capitalismo, como as artes, a educação ou as profissões intelectuais.
A proletarização do século XIX era acompanhada pela pauperização. No século XXI, a proletarização do trabalho intelectual é conseguida por incentivos financeiros aos profissionais que aceitam proletarizar-se, isto é, prescindir da autonomia profissional e tornarem-se parte integrante dos sistemas de administração do capital global.
Uma das evidências da existência desse processo é a cristalização de formas
organizativas hierarquizadas entre os profissionais, que é uma forma de instituir a submissão ao capitalismo, em substituição das relações entre pares. O direito das organizações substitui, assim, o prestígio social, a burocracia substitui a troca de ideias e as lutas ideológicas entre os profissionais.
Do método sociológico
Um dos problemas da especialização do trabalho sociológico é o alheamento cognitivo do lixo social produzido no processo de construção do campo isolado análise. A atenção à urbanização e à industrialização, por exemplo, não tem comparação como a dedicada ao que se passa na agricultura e na extração de matérias-primas. A atenção àquilo que surge de novo é acompanhada por um alheamento daquilo que é destruído, no meio ambiente e nas pessoas, tudo confundido com a natureza ou com o inimigo (incluindo doença e/ou crime). Aquilo que é dado e herdado é magicamente tomado como aquilo
recebe e recicla o que não interessa considerar. A nova geração, incluindo a de advogados, não está apenas a aprender como receber a herança profissional da qual perspetiva viver. Por um lado, está a aprender a sobreviver no mundo, tão atenta quanto lhe é possível aos riscos existentes, incluindo a ideia de ter que mudar de emprego várias vezes ao longo da vida, e, por outro lado, concentrada em pensamentos positivos, de sucesso profissional, individual e corporativo, conforme ensinam as escolas profissionalizantes e a psiquiatria-psicologia.
Essa atenção e dedicação à causa profissional, por vezes excessiva do ponto de vista da saúde, não é típica dos advogados. Mostram-no as estatísticas da novel doença do burnout, bem como as muitas histórias de entretenimento e autoajuda dedicadas ao assunto (Cury, 2018). A explicação deste autossacrifício dos melhores tempos da juventude, esta atividade contranatura autodeterminada nos mais novos para a conformidade, passa, certamente, pelo destino exemplarmente negativo dos jovens que não estão em condições de participar na corrida por uma posição de conforto na sociedade moderna. Os dois mundos, o do sucesso e o da exclusão sociais, não estão separados. Ao invés, estão intimamente ligados. Mais do que a circulação entre um e outro mundo, o medo de ser excluído e a culpa de estar excluído são partilhados por todos.
No caso da advocacia em Portugal, a luta política e profissional tem oposto com clareza, nos debates eleitorais da Ordem dos Advogados, os interesses das empresas de advogados aos advogados de escritório ou assalariados. Tais disputas acompanham um distanciamento dos profissionais das atividades pro bono e da defesa dos direitos humanos. Comparativamente ao passado e a outros países, como Espanha ou Irlanda, a mobilização dos advogados em defesa dos direitos humanos é escassa. Em Portugal, ao contrário dos dois países citados, não existem atividades associativas para proteção dos direitos dos presos e a Ordem dos Advogados expressamente, em vez de reclamar dos seus associados atividades pro-bono, não as recomenda.
A proletarização dos advogados é um fenómeno global, ou não será. Será útil para a libertação dos investidores dos constrangimentos de circulação global de capitais e de atividades económicas que a aliança neoliberal procura continuamente desenvolver com sucesso desde os anos 80. Conquista as mentes de uma profissão estruturante dos regimes políticos modernos e paga aos melhores para defender os seus interesses imediatos. Os próprios profissionais empenhados em receber as retribuições disponíveis para quem, dentro da profissão e dentro dos órgãos de soberania do estado, favorece os interesses dos capitalistas, tratam de organizar profissionalmente, nas respetivas profissões, as estruturas hierarquizadas que caracterizam e deram provas nas empresas privadas.
Estes processos que se aplicam a todas profissões têm, no caso da advocacia e nas profissões jurídicas em geral, um caracter politizado, que se pode observar também, por exemplo, na novel profissão dos economistas, formados em grandes quantidades por cursos universitários que anulam o ensino das teorias económicas e instalam um discurso único económico como se apenas existisse em cima de Terra uma teoria: a neoclássica. A mais apropriada para a divisão dos profissionais em especializações estanques entre si e, por maioria de razão, estanques com quaisquer outros conhecimentos.
A ideia da haver uma necessidade de um advogado competente saber ler latim e grego ou conhecer trabalhos de ciências sociais para compreender o mundo e enquadrar os casos em que trabalha foi substituída pela procura de um nicho de mercado lucrativo e pouco acessível, sobretudo organizacionalmente protegido num recanto qualquer da hierarquização profissional, portanto, dependente da boa vontade do génio organizador, o patrão de empresa.
A consciência do beco sem saída proletarizante a que os postos de trabalho jurídicos mais bem pagos conduzem é obscurecida pela ideia de ser por via da competência profissional normalizada e normalizadora que cada um merece ou não auferir os rendimentos, salários e honorários. Ao mérito organizacionalmente atribuído a uns corresponde a culpa pelo demérito dos que nem sequer foram considerados para fins de proletarização. Isto é, a proletarização, no século XIX como no século XXI, corresponde ao recrutamento de pessoas reduzidas a agentes do capitalismo para sobreviverem. Embora, evidentemente, haja diferenças substanciais entre as alternativas de vida para os camponeses do século XIX e para os licenciados no século XXI.
A advocacia na era da globalização
As profissões clássicas, como a engenharia, a medicina ou a advocacia, são formas de individualização social e legal do trabalho, à margem do assalariamento. A profissionalização neoliberal caracteriza-se por um forte movimento associativo profissional dos assalariados (Freire, 2003), em busca de prestígio e regulação laboral à margem da concertação social e do sindicalismo. Na medicina e na engenharia, mas não na advocacia, surgiram em Portugal sindicatos que complementam a ação das ordens profissionais, na defesa dos interesses dos respetivos associados. A empresarialização do trabalho das profissões clássicas, por outro lado, que é mais antiga na engenharia, divide os profissionais pelas linhas das lutas de classe: a carreira profissional, autónoma e independente, opõe-se à dependência do assalariado. Mas, ao mesmo tempo, empresarialização e sindicalização ocorrem numa época histórica de moderação dos efeitos sociais das contradições de classe. Ao menos imaginariamente, os melhores desempenhos do mérito são reconhecidos e acompanhados pela promoção profissional, financeira, social, eventualmente de classe.
O alargamento neoliberal da profissionalização foi acompanhado pela generalização da aceitação da ideia de se viver numa sociedade meritocrática. Em larga medida, correspondem ao projeto de transformação social das sociedades mais ricas em sociedades do conhecimento, de que a globalização, a deslocalização das indústrias para países em desenvolvimento, são outros aspetos. A democratização do ensino superior, ocorrida a partir dos anos setenta, multiplicou a formação inicial de cada vez mais ocupações laboralmente reconhecidas. Os trabalhadores foram especializados e despolitizados, transformados em colaboradores, em potenciais aprendizes ao longo da vida.
Os politécnicos e as universidades perderam a sua ambição original de fazer convergir práticas e conhecimentos recolhidos e desenvolvidos pelos trabalhadores e pelas elites intelectuais, a favor das sociedades. O igualitarismo foi reconduzido do aspeto legal, de garantia de direitos – leis laborais reconhecendo e compensando a subordinação contratual dos trabalhadores perante os seus empregadores e politicamente os sindicatos – para o aspeto económico, utilitário – igualdade perante os mercados de trabalho, em nome da flexibilidade e adaptação da economia às necessidades. Passaram a ser os mercados que, aos olhos da ideologia dominante, devem determinar o valor relativo do trabalho, não em função da competência abstrata de cada um ou da antiguidade, mas em função da capacidade de resposta à procura, às necessidades, aos poderes dos mercados. Os problemas sociais cada vez mais complexos e diversificados requerem soluções por medida, ao mesmo tempo globais e locais, flexíveis e abertas. As empresas mais adaptáveis, internamente solidárias e eficientes, são melhores respostas do que sindicatos de trabalhadores competentes, mas autocentrados no passado e nos seus próprios interesses, formados num tempo em que os novos problemas não existiam.Com a globalização, com a sociedade do conhecimento, a exportação de trabalho inteligente para o mundo substituiu, na hierarquia de valores civilizacionais, a exploração, a importação de matérias primas devolvidas sob a forma de produtos manufaturados. As grandes empresas multinacionais e os grandes sindicatos de trabalhadores que com elas negociavam o valor do trabalho, segundo as regras keynesianas em vigor nos trinta anos do pós-guerra, foram desmantelados em constelações de firmas financeiramente autossustentáveis, com os respetivos colaboradores (Reich, 1991). Os engenheiros e os professores, que tinham sido as profissões mais volumosas no pós-guerra (Bell, 1973), na era da globalização foram superados por outros analistas simbólicos mais necessários e criativos, libertos do peso da ciência e da realidade: os economistas e os juristas, os engenheiros financeiros, apoiados nos mundos virtuais criados pelas novas tecnologias de informação e comunicação.
A profissão deixou de ser a referência a um espaço de criatividade individual, autoral, moderna, mas em larga medida artesanal. Passou a ser uma referência de maior proteção contra o arbítrio patronal, na época da cristalização burocrática dos sindicatos. Essa proteção seria materializada no mérito, na capacidade de ser útil à sociedade, medida pelos mercados das profissões e do lugar de cada um nesses mercados, independentemente das lutas de classe e das posições políticas dominantes em cada momento. As posturas político-sindicais foram sendo substituídas por atitudes profissionais, distanciadas das lutas de classes e submissas aos interesses dos investidores, dos financiadores das atividades profissionais, incluindo dos financiadores das atividades de formação inicial e profissional.
A certificação do mérito, tal como noutras atividades, pode ser mais autorregulada ou hétero-regulada. O aumento de criação de ordens profissionais nas últimas décadas mostra a preferência dos profissionais por uma autorregulação contratual pública, que no caso dos médicos interfere diretamente com a formação inicial nas universidades e no caso dos advogados não o fez. A Ordem dos Advogados veio tentar interferir tardiamente nesse campo através da exigência de exame de admissão à carteira profissional. Ação para reduzir a concorrência no mercado. Ação que reforçou o valor da proteção empresarial dos licenciados que se proletarizam, afastando-os mais da profissão clássica. Dados os desenvolvimentos das últimas décadas, as crescentes escolarização, formação universitária especializada e profissionalização, a decrescente sindicalização, a transformação de trabalhadores em colaboradores, a estratificação dos profissionais em função da internacionalização e das capacidades de adaptação aos mercados, as formas empresariais de desenvolver as profissões, de que modo o público é atualmente melhor servido, de facto, do que já foi, anteriormente? De que modo o direito natural, por exemplo, é hoje mais valorizado do que antes? Como a advocacia tem encarado as políticas de troca de liberdades por segurança?
Ordens profissionais e classes sociais
A organização moderna do trabalho em torno da propriedade, em torno da abolição da posse dos meios de produção pelos próprios trabalhadores, transformou as sociedades de ordens em sociedades de classes. As diferenças sociais deixaram de ser produzidas judicialmente, por exemplo através das autorizações e proibições de uso de vestuário, e
passaram a ser produzidas sobretudo pelo estado financeiro de cada um.
Aquilo que era governado à vista, por decreto, exposto na sua crueza, passou a ser ponderado com outros meios, na verdade com muitos mais meios, por kafkianas burocracias juridicamente elaboradas, de forma a assegurar uma igualdade formal perante a lei e a criar sistemas de diferenciação de modo a implicar as próprias vítimas da opressão na produção das condições sociais opressoras (Foucault, 1999; Illich, 2018; Marcuse, 1991). De uma maneira geral, a liberdade de cada um passou a depender do êxito individual na procura de emprego, transformado em fundamento social da identidade e especialização profissional. De outro modo, as pessoas sem emprego ou proteção de quem tenha um emprego, podem, ou até devem tornar-se vítimas legítimas de processos de integração social de ajuda e autoajuda, sujeitos à maior ou menor
empatia tanto por parte dos funcionários ou voluntários que acompanham essas vítimas, como das próprias vítimas entre si e contra si.
De um modo esquemático, a institucionalização política das lutas de classe no pós-guerra não resultou na homogeneização social das sociedades, mais ricas ou mais pobres. Resultou, em vez disso, na legitimação das dualizações das condições sociais, umas positivas e esperançosas e as outras negativas e presas nas armadilhas da pobreza, em que os trabalhadores úteis, competentes, aceites pelos mercados de trabalho, ascenderam a classe média, atormentados com a perspetiva de viverem uma espiral negativa caso não se adaptam às sempre novas solicitações empresariais. Ao mesmo tempo, enquanto o mundo dos profissionais era usado para consolidar as posições dos trabalhadores de classe média, ao menos simbolicamente, os mundos dos profissionais clássicos proletarizava-se. Isto é, transformou-se em campo de recrutamento de empresas que condicionam a autonomia e liberdade profissionais, mediando entre eles e os seus clientes, em grande medida substituindo-se aos clientes, interpretando politicamente as suas necessidades.
A dualidade das classes sociais é um processo e não a descrição de uma realidade. Por um lado, porque os trabalhadores nunca se uniram politicamente, como desejaram os socialistas. Por outro lado, porque entre as classes sociais subordinadas não há capacidade de denunciar, e menos abolir, a produção social e institucional de identidades degradadas (Goffman, 2004) dos lúmpen [pessoa que pessoa ao lumpemproletariado; lumpemprotelariado: designação marxista para o proletariado mais pobre que geralmente não tem consciência de classe in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, em linha], falhados, pobres, criminosos, imigrantes, frequentemente imaginados como resultado de etnias estigmatizadas. A integração política dos movimentos dos trabalhadores no aparelho de estado correspondeu a uma integração social de muitos trabalhadores, mas só de alguns. A dualização social, entre trabalhadores bons e trabalhadores maus, entre pobres bons e pobres maus, entre os que querem trabalhar e os que não querem trabalhar, nunca deixou de polarizar as sociedades modernas. O combate à pobreza, à fome e à miséria, como é sabido, não está limitado por recursos, mas pela estrutura da organização social global. A miséria, de alguns países e de pessoas concretas, tem uma função social: será a função da dívida (Graeber, 2011), a função de produção do medo, da culpa da contaminação social do mal-estar?
Pierre Bourdieu (1979) na cultura, Michel Foucault (1999) na disciplina, Erwin Goffman (2004) na identidade, Norbert Elias (1990) nas emoções, descobriram formas não financeiras e não jurídicas de produção da distinção de classes que são, ao mesmo tempo, constituintes de estratificações sociais que podemos assimilar, ao mesmo tempo, a ordens e a classes. Sob o capitalismo, além dos mecanismos de mercado, pode encontrar-se a produção social das desigualdades ontológicas entre as pessoas, juridicamente apoiada, na sua promoção e/ou na sua cristalização.
A existência de infraclasses, de excluídos, de underdogs, tem sido criminalizada (Young, 1999). Isso, ao mesmo tempo, reforça e retrai o medo: culpabiliza positivamente as vítimas da miséria (Dores, 2018). Esse é um modo de dispersar a atenção política da evidência da falha multisecular do capitalismo cumprir as suas promessas: abolir a miséria e a violência. O recurso dos estados à culpa, ao sacrifício e à expiação, às ideologias religiosas tradicionais, faz das prisões, como se costuma dizer, são mundos à parte. São, em parceria com a tabloidização da comunicação social, o assistencialismo, etc., instrumentos de escamoteamento e desresponsabilização dos problemas sociais, por parte das elites. São formas de vincar fronteiras de classe como se fossem fronteiras de ordens, entre os judicialmente livres e os judicialmente tutelados. Distinção entre os criminalmente livres e os criminalmente tutelados, como protótipo da distinção entre os livres no acesso ao uso aos meios de produção e de subsistência e os sem tal acesso. Alegadamente por razões de mérito e demérito.
Esta continuidade das ordens sociais e da opressão organizada pelos estados, na era da reprodução das classes sociais pela economia, ilude as próprias ciências sociais. A espuma dos dias, a agitação técnico-financeira dos mercados, a convergência da publicidade e da propaganda (Harari, 2018; Lyon, 2001), a profissionalização da produção de conhecimentos (Coser, 1956: 27), o crescimento económico, toldam a própria perceção das profundas continuidades em curso da opressão e das suas consequências, como a fome e a violência.
Nomeadamente, custa a acreditar a persistência multisecular dos índices de mobilidade social, que não foram tocados pela modernização (Clark, 2014). Ainda que essa tenha sido a conclusão dos estudos que tornaram famoso Pierre Bourdieu nas ciências da educação (Bourdieu & Passeron, 1964, 1970). A noção de escola como instrumento moderno de reprodução foi substituída pela ideologia do ascensor social, confirmada de forma tautológica por inquéritos sociológicos sobre a distribuição crescente de certificados escolares.
O aumento do número de profissionais, incluindo os das profissões clássicas, não significa um processo de desproletarização das sociedades do conhecimento. Significa a introdução de formas de distinção de classe dentro das profissões e, portanto, os processos de proletarização dos profissionais em conflito com os processos de profissionalização tradicionais, dentro de cada profissão. Entre os profissionais com acesso aos meios de produção, por serem administradores de empresas profissionais ou outras, e os profissionais sem acesso aos meios de produção, divididos entre os que aspiram a ter acesso aos meios de produção e os que não alimentam tal aspiração. Todos divididos entre os que seguem as orientações profissionais dos primeiros e os que procuram seguir outras orientações profissionais, incluindo tradicionais ou sindicais.
A profissionalização das lutas de classe
A teoria da tendência igualitária que caracterizaria a sociedade moderna foi adotada pelas lutas dos trabalhadores. Como pela boca morre o peixe, as palavras de ordem das lutas burguesas contra os privilégios aristocráticos, em nome da igualdade, foram usadas para dizer que havia outros grupos sociais, outras classes, à cabeça os trabalhadores produtivos, que também mereciam ser englobados naqueles que ascenderiam ao privilégio da igualdade.
As revoluções que reclamaram liberdades para os negócios, em forte crescimento para acompanhar os processos de afirmação da Europa no mundo, valorizaram o trabalho.
Primeiro as competência[s] politécnicas do trabalho, como na Enciclopédia. Mais tarde o trabalho como símbolo de dignidade senhorial, quando se incluíram os trabalhadores no direito de serem tratados por senhores. O animo dessa transformação cultural foi e continua a ser tão grande que a burguesia, os trabalhadores intelectuais e de serviços, praticamente toda a gente, incluindo os desempregados, as mulheres e as pessoas que se dedicam às prestações de cuidados, vivem o trabalho como aquilo que há de mais dignificante. Independentemente da competência politécnica ou especializada, o valor geral do trabalho tornou-se, ao mesmo tempo, uma justificação do trabalho como sacrifício, como tripálio (instrumento de tortura romano constituído por três paus).
Os processos de profissionalização tornaram-se formas de alienar as competências, democratizando-as ao serviço dos investidores, com perda de autonomia fundada na posse dessas competências. O taylorismo, a decomposição das tarefas por unidades simples de ação, usado com largos proveitos na indústria, criou a organização científica do trabalho que expandiu a mesma lógica de expropriação de competências dos profissionais aos sectores de serviços e, mais recentemente, aos sectores mais qualificados do trabalho intelectual. A contribuição das novas tecnologias de informação e comunicação assumem um largo papel instrumental nesta expansão da multiplicação das capacidades de mobilização de competências altamente qualificadas (requerendo grandes períodos de formação inicial).
Pode entender-se, ingenuamente, a liberdade e a igualdade como uma boa intenção (Orwell, 2017). Na prática, porém, os valores revolucionários partilhados pela burguesia e pelos trabalhadores foram pretexto de discriminações políticas muito vincadas, e sanguinárias, sempre que surgiram receios junto das elites dominantes que os respetivos privilégios, económicos e políticos, estavam em causa. A liberdade de trabalhar por conta própria, de participar em associações sindicais ou profissionais, de organizar ações cívicas, de estabelecer contratos, embora sejam instituições modernas pensadas para assegurar os instrumentos de manutenção das liberdades e da igualdade formais funcionais, úteis à sociedade como um todo, estão sujeitas aos ventos frequentemente agrestes da dominação, da exploração e das lutas de classe que se reproduzem e aliam conflitualmente.
Os enciclopedistas reuniram folhetos sobre como fazer individualmente, e com meios acessíveis a todos, atividades profissionais anteriormente vedadas pelos privilégios das corporações. Foi um primeiro catálogo de bricolage contra a ordem urbana dos mestres das corporações, que usavam a opressão para reservar e planear as respetivas atividades, e dos seus companheiros e aprendizes, em nome das necessidades sociais conhecidas e protegidas pelas cidades.
As escolas politécnicas e o positivismo celebraram e institucionalizaram a separação entre as tecnologias, que deveriam ser livres, e os seus utilizadores, igualmente livres, limitados apenas nas suas relações pelas competências de utilização e a sua eficácia.
Ainda hoje entendemos ser um mérito a qualidade profissional de bem utilizar uma tecnologia ao serviço de quem dela possa necessitar, dependendo apenas da capacidade de remunerar o trabalho.
A modernização dissociou os profissionais, os mestres das corporações, das tecnologias, entretanto libertadas dos segredos das corporações e entregues ao capital, às economias de escala. A competência, porém, fazia a diferença entre a capacidade de uso das tecnologias, admitindo que estão disponíveis para determinado fim, em contraste com o uso desqualificado de força de trabalho, mais barata desde o momento que fosse suficientemente abundante. No final do século XIX e início do século XX, havia quem falasse de aristocracia operária para se referir à classe dos operários mais qualificados, menos substituíveis, fundamentais para manter as indústrias em funcionamento, sem os quais as empresas paravam. Dada a sua posição relativa no mercado de trabalho, a aristocracia operária era mais reivindicativa e mais bem-sucedida nas suas reivindicações do que a massa operária. Em particular, a sua influência social e política era mais forte e distinta, como foi notado no movimento operário.
O sistema de libertação das tecnologias e dos profissionais das corporações, portanto, transformou-se em processos variados de desenvolvimento tecnológico para reduzir custos de mão-de-obra, para difundir conhecimentos com a dupla finalidade de criar novas tecnologias mais adaptadas às novas condições sociais e de reduzir, estandardizando, os custos de produção.
A engenharia foi a profissão clássica que mais cedo separou a sua função criativa da função reprodutiva (bastante mais do que os arquitetos, por exemplo). A medicina também fez convergir a ciência (química, farmácia) com a clínica, com crescente importância da primeira e decrescente tempo para praticar a segunda. Os juristas foram os mais conservadores a entrar nestas transformações, de que a empresarialização autorregulada é um dos seus vetores.
Conclusão
A nova geração de advogados confronta-se com uma situação decorrente da transição da profissão de um lugar mais próximo das funções do estado – de defesa dos direitos das pessoas e de organização da política – para um lugar de mediação entre o estado e os mercados, sobretudo internacionais – de mediação entre o estado e a economia para atrair investimentos. A desproteção da vida pública e privada revela-se de muitas formas, como nas questões de liberdade de expressão e de reserva da vida privada, tanto de políticos e jornalistas como de trabalhadores e denunciantes de violações dos interesses comuns, nos campos da corrupção ou da violação de direitos humanos. A mobilização da profissão dos advogados faz-se sentir mais na recolha de recompensas financeiras produzidas por interesses manipuladores dos estados, como nos paraísos fiscais, por exemplo, do que reage à desautorização política dos princípios fundamentais do respeito pelo direito (Preto, 2010).
A nova geração de advogados foi produzida no quadro da democratização do ensino superior e do acesso à profissão. A expansão dos recursos disponíveis para pagar serviços de representação legal não acompanhou o ritmo de aumento da produção de licenciaturas e de aspirantes a advogados, enquanto a profissão se feminizava. A internacionalização da profissão, ao responder à globalização e ao avanço das ideologias de gestão do estado como empresas privadas, nomeadamente às práticas de outsourcing, abriu novas oportunidades de profissionalização inacessíveis aos profissionais que mantiveram as rotinas profissionais anteriores, sem empreendedorismo, não empresariais. O carácter da melhor imagem da profissão, para os novos profissionais, deixou de ser a
romântica vontade de integrar as lutas contra as injustiças criadas pela exploração económica (Rawls, 1993) e passou a ser procurar o melhor lugar na hierarquia profissional em cada momento, como se tratasse de uma carreira laboral semelhante às dos trabalhadores enquadrados em contratos coletivos de trabalho. As empresas de advogados são a expressão puramente profissional desse novo paradigma de profissionalização. A defesa dos direitos naturais, dos direitos humanos, deixou de ser uma responsabilidade profissional especial da elite dos advogados e passou a ser um uma responsabilidade de todos os cidadãos, em abstrato, de todas as profissões, mas de ninguém em concreto (Sen, 2004).
As instituições judiciais, como as definidas pelos tribunais superiores, vivem realidades e tempos cada vez mais distanciados das vidas quotidianas que, por sua vez, a ter em conta o aumento do número de processos judiciais, continuam a precisar de recorrer, cada vez mais, aos tribunais. Esse distanciamento é aumentado pelos processos de diferenciação próprios da globalização, destacando os mercados locais e os mercados globais uns dos outros. Uns e outros reclamam do estado, ao mesmo tempo, menos regulação e mais proteção. Impondo aos advogados especializações, tomadas de posição profissionais prévias, ao serviço de quem paga melhor ou pior. Sendo que quem
encontra formas de receber os melhores honorários é quem está mais próximo das políticas de troca de liberdades por segurança, de segurança jurídica própria dos estados por risco calculado de tipo empresarial.
O direito constitucional e das relações internacionais, consolidados no último momento histórico crítico, com o fim da Grande Guerra para a institucionalização da ONU e do seu Conselho de Segurança ou a Revolução dos Cravos e a constituição de Abril, em Portugal, são tipicamente a origem da racionalidade legítima de cada estádio de relação de forças sociais. Ao direito estadual opõem-se e subordina-se o direito contratual entre proprietários livres, protegidos pelos estados e servidos pelos recursos, naturais e humanos, extraídos da natureza e das sociedades. Às instituições desenhadas em abstrato, a pensar na Guerra Fria, correspondem, em concreto, organizações que as realizam (ou não) necessariamente de forma parcial, incompleta e enviesada, na era da globalização.
O discurso único, característico do período neoliberal, representa uma chantagem política, bem-sucedida, de troca da subordinação (contenção e repressão correspondente do uso das liberdades) para evitar a precariedade da vida em pobreza e miséria (através da segurança de estar do lado mais forte, do lado da sociedade com acesso à abundância de recursos). A sociedade do capitalismo avançado está tolhida, aturdida, anestesiada, na sua ação coletiva, por esta política de controlo social fundada na armadilha da pobreza. A profissão dos advogados também. A sobrevivência individual na profissão depende da capacidade de cada um escapar à precariedade de acesso aos recursos, através da proteção superior, hierarquicamente organizada, em especial por empresas de advocacia internacionalizadas: através da precarização do acesso às liberdades profissionais e da desvalorização dos combates pelos direitos humanos, tal como eles foram vividos nas décadas imediatamente a seguir ao fim da Guerra.
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Notas:
As corporações medievais eram organizações urbanas de mestres e aprendizes
organizados de forma a viverem em conjunto em torno de artes mais ou menos secretas transmitidas na tarimba e avaliadas em função das relações sociais que eram estabelecidas dentro da corporação e entre a corporação e os mercados locais com os quais ela se relacionava.
O comércio e os Descobrimentos estenderam de tal modo as relações sociais que as organizações corporativas passaram a necessitar de um estado que as protege-se dos conquistadores de cidades e dos riscos criados por vendedores agressivos de produtos vindos de fora, sobretudo do ultramar (Brown, 2009).Os anglo-saxónicos ainda hoje chamam corporações às empresas multinacionais, cuja organização pouco ou nada tem a ver com a organização corporativa medieval.
A industrialização começa com o sistema putting out, isto é, a deslocalização das
atividades laborais para fora do âmbito territorial da ação das corporações, as cidades.
Para mais tarde se reorganizarem sob a forma de fábricas. Deixaram de ser os
empresários a ir ter com os trabalhadores com a sua matéria-prima para ser elaborada em produto e passaram a ser os trabalhadores a custear os transportes e as despesas de alojamento para terem acesso ao salário. Tal transição não se fez sem grande violência, evidentemente. Portanto, o estado que começou por apoiar o comércio com base na organização de recursos militares capazes de impor tal atividade além mar, tornou-se
também utilizador da força para impor a proletarização das populações expulsas das suas anteriores formas de vida, a exploração da terra em nome da aristocracia cujo poder as submetiam.
Do lado da propaganda, com os Iluministas, ocorre a valorização do trabalho sob a forma da sua individualização (anticorporativa, portanto) e da sua transparência (a revelação pública dos segredos dos mestres através da utilização da escrita e dos meios de publicação e divulgação entretanto criados). Esta valorização do trabalho presume o enfraquecimento das corporações – que só se darão por definitivamente vencidas na segunda guerra mundial, com a derrota dos integristas, fascistas e nazis – em favor das comunidades de trabalhadores individuais potencialmente iguais entre si (ainda hoje correspondentes à noção de senso comum sobre o que é uma sociedade, na Europa) e dos mercados de empresários individuais livres para tomarem as iniciativas que entenderem e lutarem por elas, protegidos da agressividade da luta económica por comunidades religiosas (ideia de sociedade vigente nas Américas).
A valorização individualizada do trabalho substituiu a desvalorização social do trabalho, que estava na base do recurso autorizado e recomendado à escravatura. Foi um processo histórico lento e não voluntário. Processo de que escaparam todos os que puderam, como os profissionais. Os profissionais era indivíduos mas não se confrontavam com um mercado agressivo. Ao invés, dada a natureza do seu trabalho, altamente elaborado culturalmente e imprescindível ao equilíbrio das pessoas envolvidas por dinâmicas de globalização que se lhes impunham sem terem oportunidade de entender ou conhecer o que estava a acontecer, os profissionais eram raros e tratados com deferência necessitada tanto pelas classes altas como pelas classes baixas: apoio jurídico, médico, de construção de infraestruturas, satisfazem necessidades básicas de relação com os estados violentos, com a doença, com a saúde.
As profissões são detentoras de competências altamente elaboradas e raras, porque cada pessoa ou família só precisa de as usar uma vez ou poucas vezes na vida. São competências estruturantes de sociedades cuja amplitude em espaço e tempo se transformou paulatinamente da autarcia para o cosmopolitismo.
As profissões imaginam-se intelectualmente superiores às sociedades, e ao serviço destas, independentemente das divisões de classe. São elas que promovem os valores da meritocracia para justificar a sua superioridade social relativamente aos outros trabalhadores. E se distinguem internamente como os de esquerda – ativamente sensibilizados pelas misérias alheias –, os de direita – ativamente empenhados em contribuir para a revolução social contra as aristocracias (direitos diferenciados segundo a condição social) e os agnósticos – motivados exclusivamente por sobreviver ou enriquecer como profissionais.
Há profissões que gozam de uma estabilidade suplementar, quando estão diretamente protegidas pelos estados, como juízes, procuradores, militares, professores, pessoal de saúde, etc. Estabilidade, claro, atacada pelas políticas neoliberais atuais.
O período histórico que aparenta estar a chegar a um fim, neste final de segunda década do século XXI, a que Nancy Fraser chamou capitalismo financiarizado, caracteriza-se pela democratização das profissões e, ao mesmo tempo, a precarização do trabalho e a redução geral da massa salarial relativamente ao produto. Derrotado o corporativismo, o nacionalismo tem sido utilizado com sucesso na última década para responder à contradição entre a maior escolarização das populações, convencidas pelas ciências sociais que a escola é um ascensor social, o enquadramento simbólico de cada vez mais trabalhadores em profissões simbólicas, na medida em que a contratação coletiva e as negociações sindicais perdem influência, e a crescente precarização do trabalho mais individualizado, em condições de cooptação das oposições comunistas e trabalhistas pelos estados. A profissionalização da política, incluindo do sindicalismo, desqualificou as restantes profissionalizações, exceto as que servem os desígnios políticos de extensão da globalização ao novos patamares de diferenciação entre os trabalhadores locais e os profissionais globais, designados por Robert Reich (1991) por analistas simbólicos.
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